sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O Santo Guerreiro e o Herói Desajustado



Acho cada vez mais difícil fazer odes a qualquer coisa sem cair numa breguice chata. Odes, já ensinou o Mário de Andrade, são boas mesmo quando falam mal, quando criticam, enfim, quando não são odes. Essa deve ter sido a premissa da Cia. São Jorge de Variedades ao começar a pesquisa de seu último trabalho: O Santo Guerreiro e o Herói Desajustado.

O primeiro é o guerreiro que monta o cavalo e luta com o dragão, Ogum para alguns, é personagem de um dos episódios do Mundo da Lua de Lucas Silva e Silva e está no nome e no sangue da Companhia. São Jorge está lá para apresentar o segundo, o fidalgo mais conhecido da literatura mundial, que enxerga o mundo sem o feitiço cotidiano: Dom Quixote. Ele veio parar na praça da República, pra mostrar tudo o que terá de enfrentar por sua honra de cavaleiro e seu amor por Dulcinéia.

Olha, eu já tinha pensado na Dulcinéia de tudo quanto era jeito: feia, bonita, alta, magra, desdentada, esquelética, homem, sapatona, prostituta, inconsciente coletivo, mas nunca, nem nos meus mais profundos delírios de ácido eu diria que Dulcinéia é São Paulo. Por isso existe o trabalho desse grupo: ressignificar Dulcinéia e São Paulo, como uma coisa só.

Este Dom Quixote passa toda sua trajetória procurando por uma Dulcinéia que vai se revelando cheia de moradores de rua, motoboys, camelôs, cheiradores de cola, madames com poodles e, óbvio, ele enfrentará os famosos moinhos de vento. Aqui, Dulcinéia é poluída, problemática, mas nem por isso faz perder a paixão que todo paulistano tem em organizar a vida no amor e ódio diário por essa cidade doida. Aqui está a Ode. Não há como falar de São Paulo com mais um seriado da Globo. Eu não vou assistir e quem for vai achar chato ou pelo menos repetitivo. São Paulo é revelada das entranhas quando um grupo resolve apresentar seu espetáculo na Praça da República, uma homenagem torta, um personagem torto, como nós, que procuramos uma beleza que cada vez fica mais difícil de encontrar.

Não tenho a menor dúvida de que esta peça será resenhada diversas vezes, assim como já foi noticiada em toda imprensa paulistana, por isso vou me ater a uma única história que aconteceu no dia em que assisti. Sentada ao meu lado, estava uma moradora de rua que não parava de falar ao longo de todo o espetáculo. Em dado momento, ela saiu e foi buscar um “trago”. Quixote, já nos seus delírios finais clama por Dulcinéia, e eis que ela é personificada por essa moradora, que ressurge, entra em cena sem ser chamada e afirma, cara a cara com o fidalgo: “Eu sou Dulcinéia!”. Quixote desconcertado não quer enxergar a verdade, mas ela insiste “Eu tomei um pouco de Sol, mas sou eu”. E a partir daí ela fará dupla com Sancho Pança, seguirá na procissão e dará a impressão de que tinha sido contratada. Claro que não, aquilo é simplesmente um dos fatos que faz deste dia de apresentação, como todos os outros, plenamente único.

Afirmando o movimento dos grupos, que é o legado mais importante do teatro dessa cidade, os integrantes da Cia São Jorge de Variedades produzem um espetáculo profundamente macro e micro-político, sem serem panfletários e chatos. Uma experiência emocionante (no sentido menos piegas da palavra), daquelas pra se guardar no canto mais gostoso da memória de todos aqueles que acordam, andam, vivem, choram e fazem odes diárias a São Paulo.

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