terça-feira, 26 de julho de 2011

DON QVIXOTE DE LA MANCHA








Foi há quatrocentos anos, em Setembro de 1604, que Miguel de Cervantes obteve autorização régia para a publicação da primeira parte do D. Quixote de La Mancha. Hoje, viajar pela região da Mancha, onde decorreram as aventuras e desventuras do herói cervantino, não dispensa levar o livro na bagagem.

Argamansilla de Alba ainda vive, como outrora, da agricultura, olivais e vinhedos de cepa curta a perder de vista até ao Tomelloso. Mas D. Benito, agricultor reformado que agora vê arrastarem-se os dias vagarosos da Mancha atrás do balcão de uma taberna na Plaza de España, não esquece a humilhação das “subvenciones” com que a Europa pagou o arranque da vinha: “ahora hay pan, pero de aquí a cincuenta años habrá hambre, no es así que se hace la prosperidad de una nación”.


A planície manchega vista dos moinhos de Consuegra, Espanha
Muita gente de Argamansilla partiu. Tal como um dos filhos de Benito, para Ibi, uma povoação na província de Alicante onde se fabricam brinquedos para os sonhos da infância. Andarilhos à sua maneira, perpetuando uma condição que Azorín exaltava ao evocar as circunstâncias de nascimento do pueblo - os seus habitantes, vítimas de duas pestes consecutivas, transferiram-se outras tantas vezes de armas e bagagens para estâncias mais seguras, dispersando-se de cerro em cerro até se fixarem onde está hoje Argamasilla de Alba. “Acabáis de aprender como Argamansilla es un pueblo andante y como aquí había de nacer el mayor de los caballeros andantes”, escreveu Azorín no belíssimo diário de viagem «La Ruta de Don Quijote».

Em muitas das povoações citadas no livro de Cervantes abundam referências iconográficas que tomam como tema o Cavaleiro da Triste Figura e o seu fiel escudeiro Sancho Pança. De Consuegra a El Toboso, de Puerto Lápice a Campo de Criptana, de Mota del Cuervo a Alcázar de San Juán e a Almagro, um painel estampado à entrada dos povoados reproduz a silhueta dos dois aventureiros e as primeiras palavras do romance: “En un lugar de la Mancha...”.

Cervantes não esclareceu a identidade do lugar, acrescentando “...de cuyo nombre no quiero acordarme...”. A disputa entre os vários povoados manchegos pela honra de ser a terra natal de D. Quixote parece, todavia, finada. Se o delírio interpretativo de Azorín não convence espíritos mais positivistas, outros dados lançam luz sobre o assunto. Cervantes referiu-se, por exemplo, ao facto de ter passado algum tempo em Argamansilha, cujos académicos e provincianos fidalgos ridicularizou. Durante as suas andanças pela Mancha como colector de impostos para a Armada Invencível, o escritor terá passado um mau bocado por causa de umas contas mal esclarecidas, acabando na prisão de Argamansilha.


D. Quixote em Puerto Lápice
Aí (ou em Sevilha, segundo outras narrativas), teria começado a congeminar “la ingeniosa venganza a que se debe la inmortal fábula del Quijote”, como sugere Clemencín, um dos comentadores da obra. Especialmente para os turistas, engendrou-se um cenário na Cueva de Medrano - um catre, uma mesa e um banco, uma lança e uma espada penduradas na parede -, mas se parece impossível apurar se foi aí que D. Quixote saiu da pena de Cervantes (os arquivos municipais e paroquiais de Argamasilha arderam durante a guerra civil), certo é que a obra foi escrita, pelo menos em parte, no cativeiro: “Qué podrá engendrar el estéril y mal cultivado ingenio mío, sino la historia de un hijo seco, avellanado, atojadizo y lleno de pensamientos varios y nunca imaginados de otro alguno, bien como quién se engendró en una cárcel donde toda incomodidad tiene su asiento y donde todo triste ruido hace su habitación?”

Mas o dito ressentimento de Cervantes é atribuído também a outras causas, a um assunto de saias, um alegado e contrariado romance com uma sobrinha de D. Rodrigo Pacheco, patético fidalgo local retratado em má pintura recolhida num canto da igreja paroquial de San Juan Baptista. Teria sido esse, como subscrevem algumas interpretações, o modelo inspirador da caricatura cervantina de D. Quixote? Em Argamasilha de Alba, há muito que se arredou o cepticismo quanto ao aventureiro ser nativo do sítio: à entrada do povoado, num cartaz, ao lado das figuras de D. Quixote e Sancho Pança, podemos ler num cartaz “El lugar de la Mancha...”


A VENTA DEL QUIJOTE

A moderna Autoestrada da Andaluzia faz uma tangente a Puerto Lápice e voa para Sevilha, seguindo mais ou menos o itinerário do antigo Camino Real, que Cervantes terá percorrido durante as suas andanças manchegas. Ventas de Puerto Lápice, anterior topónimo do lugar, era nesse tempo proeminente encruzilhada, servida por muitas estalagens. “Siguieron el camino del puerto Lápice, porque alli decia D. Quijote era posible hallarse muchas aventuras por ser lugar muy pasagero”.

O primeiro dia passara sem glória nem aventura, e “al anochecer, su rocín y él se hallaron cansados y muertos de hambre”. Buscando um recanto onde pudesse repousar os ossos, D. Quixote avistou “una venta, que fué como si vira una estrella que a los portales, si no a los alcazáres de su redención, lo encaminaba”. Esgotado pela jornada, D. Quixote não se mostrou esquisito quanto a comeres: “Sea lo que fuere, venga luego, que el trabajo y el peso de las armas no se puede llevar sin el gobierno de las tripas”. A tasca era básica e não ainda pretexto para Cervantes desfilar o receituário das tradições culinárias manchegas. O cavaleiro não pôde provar ali mais do que «una porción del mal remojado y peor cocido bacallao, y un pan tan negro y mugriento como sus armas”.


A Venta del Quijote, hoje um restaurante “típico” na região da Mancha, Espanha
Tranquilize-se o viajeiro, que não falta pousada que o aconchegue a preceito em Puerto Lápice, e em atmosfera que o mergulhe nessas “horas lentas da Mancha”, na descrição de Cela. No casarão da espartana hospedaria El Aprisco, nos arrabaldes do povoado, rangem as velhas portas de madeira e fazem coro os ferrolhos. No pátio, o poço dorme um sono de séculos e ali perto, de chapéu na mão, um pálido D. Quixote parece digerir fadigas e cogitar, ao mesmo tempo, aventuras. Para comer, a dois passos da avarandada Plaza Mayor, no centro da vila, uma casona rural setecentista alberga a Venta del Quijote, evocação da lendária taberna onde D. Quijote merendou e se fez armar cavaleiro.

A meio da tarde, toma conta de Puerto Lápice e de toda a Mancha um torpor contagioso, uma espécie de hipnose que quase veste de materialidade o imaginário. Releio as memoráveis páginas de Azorín sobre Argamansilha: “Fuera, la plaza está solitaria, desierta; se oye un grito lejano; un viento ligero lleva unas nubes blancas por el cielo. Los minutos transcurren lentos. Que vamos a hacer durante todas las horas eternas de esta tarde? Las puertas están cerradas; las ventanas están cerradas. Y de nuevo el llano se ofrece a nuestros ojos, inmenso, desmantelado, infinito, en la lejanía”. Os horizontes manchegos convidam ao sonho e à errância. Armado cavaleiro, D. Quixote não perdeu mais tempo em Puerto Lápice: “...y así me voy por estas soledades y despoblados buscando las aventuras, com ánimo deliberado de ofrecer mi brazo y mi persona a la más peligrosa que la suerte me deparare, en ayuda de los flacose menesterosos”.



MOINHOS OU GIGANTES?

Antes de rumar para leste e atravessar o Campo de San Juan, na direcção de Belmonte, palco da última grande aventura de D. Quixote, regresso ao caminho de Toledo, a Consuegra, uma povoação que se orgulha de cultivar “o melhor açafrão do mundo”. Era já quase noite quando no dia anterior subi ao dorso da colina e mal pude distinguir então, à luz moribunda do crepúsculo, os nomes dos moinhos, nomes de personagens do livro: «El Caballero del Verde Gabán», «Bolero», «Sancho», «Chispas». Com a luz da manhã, o cerro mostra-se miradouro precioso, oferecendo um fantástico panorama da planície manchega.


Os moinhos de Mota del Cuervo, Mancha

Alcázar de San Juan, Campo de Criptana e Mota del Cuervo são os outros povoados que conservam núcleos de moinhos, todos merecedores de visita. Os primeiros foram cenário de rodagem de uma série televisiva espanhola nos anos 80, mas são os de Campo de Criptana que reclamam protagonismo num dos mais célebres episódios da saga quixotesca. Campo de Criptana é a mais bonita povoação da Mancha, com o seu casario branco sublinhado por rodapés azuis. No bairro mais popular, sobe-se por ruelas e escadinhas até ao Cerro de la Paz, onde uma dezena de moinhos vigia o horizonte.

Cerro de la Paz? Não foi ali que D. Quixote deu de caras com “treinta, o pocos más, desaforados gigantes”? O incrédulo Sancho pasmava-se, o seu espírito terra-a-terra não vislumbrava mais do que moinhos. “Aquellos que alí ves, de los brazos largos, que los suelen tener algunos de casi dos leguas”, insistia D. Quixote. A investida do desastrado justiceiro não teve melhor desfecho que as de outras aventuras, como nos conta Cervantes. Mas mesmo no infortúnio da derrota, e a provar que Unamuno tinha razão quando escrevia que o Cavaleiro da Triste Figura “no fuera un muchacho que se lanzara a tantas e locas a una carrera mal conocida, sino un hombre sesudo y cuerdo que enloquece de pura madurez de espirito”, D. Quixote descobria sempre uma lição para oferecer ao “desocupado lector”: “Es lo pueden eses gigantes: rompernos las armas, pero no el corazón”.

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